sábado, 27 de fevereiro de 2010

Breve contexto político e cultural do Brasil na década de 1950

No campo político observa-se que o governo estava preocupado com progresso econômico brasileiro, com o processo de modernidade e nacionalidade. No término do governo Dutra, foram realizadas novas eleições presidenciais. O presidente eleito em 1950 foi Getúlio Vargas com 48,7% dos votos. Em seu discurso Vargas dizia que havia voltado ao poder não apenas como líder político, mas como líder popular. Quando assumiu a presidência, retomou as suas principais características, dentre as quais esta o nacionalismo econômico.

Presidente Getúlio Vargas

A visão de progresso provocou algumas ondas migratórias do campo para as cidades, o que resultou num expressivo aumento de trabalhadores urbanos. Fato é que, enquanto o governo conseguiu administrar e manter o controle econômico a situação era estável. Porém, esta estabilidade não se manteve e o governo se deparou com situações em que era necessário se aplicar reformas econômicas.

Ao contrário do governo estado novista, neste período do início dos anos de 1950, Vargas se deparou com diversos setores das camadas populares, principalmente o operariado, organizados autonomamente. Tanto que, durante o seu governo, ocorreram por todo o país inúmeras greves de trabalhadores e movimentos sociais, tendo como motivação básica exigências de aumento salariais e denúncias do alto custo de vida.

Em 1954, a crise política desestabilizou o governo Vargas. Os políticos da UDN e a imprensa de oposição atacavam violentamente a política do governo. Ainda no mesmo ano, Vargas estava no Palácio do Catete, quando redigiu uma Carta Testamento e suicidou-se com um tiro no peito. O impacto provocado pela notícia do suicídio de Vargas e a divulgação da carta-testamento foi intenso e acabou se voltando contra a oposição. Grandes manifestações populares de apoio ao ex-presidente estouraram em várias cidades do país.

Após a morte de Vargas quem assumiu a presidência foi o vice-presidente Café Filho, este facilitou a penetração do capital externo, o que descontentou os nacionalistas e o operariado. Neste pequeno tempo que restava do mandato de Getúlio Vargas, também passaram pela presidência Carlos Luz (presidente da Câmara dos Deputados), após Café Filho ter se ausentado por motivos de doença, e Nereu Ramos (presidente do Senado).

Após um longo período de políticas autoritárias, JK assumiu a presidência em 1956 (após ter vencido as eleições de novembro de 1955), o Brasil iniciou uma nova fase política respirando ares com as idéias de modernidade.

Nota-se que, no desenrolar da década de 1950, o objetivo na área cultural era promover a preservação do folclore e da tradição o mais rápido possível, já que, como o slogan de JK (50 anos em 5 anos) deixava explicito, este foi um período onde a “modernidade” estava em processo acelerado.


Presidente Juscelino Kubitschek

Uma questão interessante apontada por Lúcia Lippi é que a própria construção da imagem do presidente possuiu a preocupação de caracterizá-lo como um moderno tradicional, ou seja, JK foi um médico que “aparece sucessivamente como cosmopolita (fala francês) e como interiorano (gosta de serestas e de música caipira)”.
1

Perante esta imagem estabelecida de Juscelino Kubitschek, percebemos o porquê da atitude tomada pelo presidente em criar uma Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, em 1958. O presidente não poderia deixar que essa preocupação em relação à perda de uma tradição nacional, digas-se de passagem extremamente diversificada, colocasse em risco a sua política otimista.

Conforme Lúcia Lippi, tal campanha teve como objetivo “entre outras atividades, montar um ‘mapa cultural do Brasil’”, além disso, estasCampanhas nacionais de folclore passam a defender traços culturais do mundo rural como elemento positivo da nacionalidade (...) a pureza do popular deveria ser conservada na modernidade”.2

Os Movimentos Folclóricos visavam defender o folclore nacional bem como resguardar a cultura popular. Em relação à Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro a antropóloga Maria Laura Cavalcanti afirma:


A Campanha participa dos debates intelectuais do país em intercâmbio com as ciências sociais que se institucionalizam no mesmo período. Fomenta pesquisas sobre o folclore em diferentes regiões, bem como sua documentação e difusão através da constituição de acervos sonoros, musicológicos e bibliográficos.3


Autores como Artur Ramos e Cecília Meireles colaboraram como defensores da cultura popular e tradição brasileira, além de ocorrer uma busca por aquilo que seria realmente a cultura popular. Veremos o surgimento do Cinema Novo e da Bossa Nova. E dentro destas novidades será pensada uma forma de integrar as camadas populares neste “novo mundo” moderno.

O gosto popular era identificado como ruim, e alguns críticos e intelectuais apontavam como causa disto o fato da arte ser tratada como objeto de consumo, de acordo com Lúcia Lippi acreditava-se que “os interesses comerciais corrompiam a verdadeira arte”.4

Em alguns casos, pode ser notado que se aponta como cultura popular àquilo que está ligado à ruralidade, conforme as palavras de Lippi:


De um lado, ela [cultura popular] aparece no universo urbano das favelas cariocas (...). De outro lado, a cultura popular continua referida ao mundo rural, como na música “Mulher Rendeira”, e ao regional com os versos de João Cabral de Melo Neto em “Morte e Vida Severina” e com Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”. 5


No teatro as peças encenadas no Brasil eram, em sua maioria, francesas. Tinha-se a idéia de que uma as melhores peças eram da Europa. Nos anos de 1950 a concepção teatral mudou e deu-se valor aos assuntos nacionais. Esta idéia começou em 1948, com a criação do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), onde ocorreu a organização das atividades teatrais, isso porque se tinha um programa regulamentado, onde os atores eram contratados e os espetáculos ocorriam em salas próprias]. O TBC foi o percussor de outros teatros que surgiram no período de 1950 como o Teatro de Arena e o Teatro de Oficina.

Neste período foram produzidas peças como Eles não usam Black-Tie (tratava sobre o panorama carioca da época), Chapetuba Futebol Clube (abordava a corrupção política existente nos campeonatos), Marido Magro, Mulher Chata (comédia que abordava os costumes sobre a juventude transviada de Copacabana), Gente como a Gente (nesta peça tentou-se escapar dos estereótipos, e não determinar o homem brasileiro) dentre outras. Eram peças genuinamente brasileiras (autores e assuntos nacionais).

Outro fato é a implementação das artes plásticas e abertura das portas do MAM (Museu de Arte Moderna). Até 1955, o rádio teve o seu auge de popularidade. A partir disto começou a perder terreno para a televisão. O primeiro programa da televisão brasileira – TV na Taba – foi ao ar no dia 18 de setembro de 1950. O apresentador, Homero Silva, mostrou aos telespectadores as diversas possibilidades da nova invenção, exemplificando com pequenas intervenções do cômico Mazzaropi, do comentarista Aurélio Campos falando sobre esporte e dos atores Lima Duarte e Walter Forster. Também participaram deste programas Hebe Camargo, Tônia Carrero e Eva Wilma.

Em São Paulo, houve a tentativa de se implantar a indústria cinematográfica. A fundação da Vera Cruz fez parte de um projeto estético-cultural mais amplo, que previa para São Paulo a vitalização da vida cultural buscando uma hegemonia na vida política e cultural do país. É nesse contexto, em que o povo é visto como cerne da nacionalidade, que predominaram as produções artísticas com um caráter popular e cômico.


Fontes

Bibliografia

MIRANDA, Wander Melo (Org.). Anos de JK: margens da modernidade. São Paulo: Imprensa Oficial do estado; Rio de Janeiro: Casa de Lúcio Costa, 2002.

Site

CAVALCANTI, Maria Laura. Reportagem datada em Março de 2002. Disponível em: www.cnfcp.com.br/ler.asp?IDSecao=2&ID_Template=marrom.


NOTAS:

1 LIPPI, Lúcia. Tempos de JK: a construção do futuro e a preservação do passado. In: MIRANDA, Wander Melo (Org.). Anos de JK: margens da modernidade. São Paulo: Imprensa Oficial do estado; Rio de Janeiro: Casa de Lúcio Costa, 2002. p.36.

2 Ibidem p.42 e 43.

3CAVALCANTI, Maria Laura. Reportagem datada em Março de 2002.

Disponível em:

www.cnfcp.com.br/ler.asp?IDSecao=2&ID_Template=marrom.

Capturada em 22 de Fevereiro de 2008.

4 MIRANDA, op. cit. p.41.

5 Ibidem, p.42.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

O abastecimento do Mercado Público de Porto Alegre através trilhos do século XIX.


Resumo: Este artigo visa avaliar a relação da construção da linha ferroviária São Leopoldo – Porto Alegre com o abastecimento do Mercado Público da capital sul-rio-grandense. Pretende ainda produzir uma contextualização da cidade de Porto Alegre durante o final do século XIX e início do século XX. Artigos como este servem para solidificar a idéia de que o abastecimento do Mercado Público não ocorria somente por via lacustre, como se pensou durante muito tempo.

Palavras-Chaves: História do Rio grande do Sul, Porto Alegre, Mercado Público, linha ferroviária.

Foto 001



[Foto 337] Fotógrafo IRMÃOS FERRARI

Descrição DOCA DO MERCADO - Data início séc. XX

Fonte: Museu Joaquim José Felizardo - Porto Alegre/RS




O Mercado Público localiza-se no Largo Glênio Peres no centro da cidade. O prédio foi inaugurado em outubro de 1869 e em seu interior funcionavam salas de prestação de serviços e um comércio de abastecimento. Durante o período de 1910 a 1914 se construiu o segundo andar do Mercado1. Na época, este pavimento foi destinado a brigar escritórios. Atualmente, nos espaços abertos acontece uma exposição de fotografias promovida pelo Memorial do Mercado Público e nas salas funcionam restaurantes e pequenas lojas.

O primeiro Mercado Público da capital dos gaúchos situava-se na Praça XV de Novembro, na época chamada de Praça Paraíso. Este mercado funcionou de 1842 a 1870, quando ocorreu a transferência, conforme diz Sérgio da costa Franco:


A “Praça do Mercado” [referente ao local onde ficava o primeiro Mercado público] serviu à população até 1870, quando foi entregue ao público o novo Mercado, de maiores proporções, construído também na Praça paraíso, porém no alinhamento da Rua Voluntários da Pátria. O velho foi demolido em outubro de 1870.2


O autor ainda fornece maiores dados sobre a construção, no qual afirma que a obra custou 246 contos de réis, o que para a época constituía um valor elevado. Sendo que o município foi obrigado a arrecadar empréstimos para custear o término da edificação. Esta que, por sua vez, mantém desde 1913 a mesma exterioridade.

Em 1979 o prédio foi tombado como bem cultural. Durante quase toda a década de 1990 o espaço e edificação passaram por um processo de restauração. Esta ação devolveu a beleza deste patrimônio cultural e o consolidou como ponto turístico. A arquiteta do IPHAN, Ana Lucia Goelzer Meira, resume a trajetória da noção de conservação patrimonial no Brasil em seu artigo Patrimônio cultural e globalização, onde afirma:

No Brasil, a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional, institucionalmente, inicia na década de 30 [1930]. Insere-se no processo de construção de uma identidade nacional pelo Estado Novo (...).A escolha prioritária de bens arquitetônicos excepcionais, ligados ao período do barroco e, particularmente, às expressões do poder dominante – como igrejas, palácios, casas de câmara e cadeia, acabaram fortalecendo uma memória monumental (...).Nos anos 70 [1970], esse conceito começa a ser ampliado para o de patrimônio cultural, e as tarefas de salvaguarda dos bens patrimoniais começam a ser divididas com os estados e os municípios.3

No século XIX Porto Alegre e as regiões ao seu redor absorveram diversos imigrantes italianos, alemães dentre outros. Ao longo deste século a cidade passou por diversos episódios dentre os quais pode ser citado o sitiamento das tropas farroupilhas4, que resultou no aumento do comércio lacustre entre a capital e as cidades de colônias alemãs. Anos mais tarde, 1865 a 1870, a capital sul-rio-grandense tornou-se a cidade mais próxima da região onde ocorria a Guerra do Paraguai.

Após estes envolvimentos com guerras, Porto Alegre começou a receber os ares das inovações já ocorridas na Europa. Em 1872, vê-se o aparecimento das primeiras linhas de bonde. Houve um replanejamento urbano onde ruas transformaram-se em amplas avenidas, becos foram alterados para ruas, se criaram parques, o porto foi reformado e a população passou a conhecer a eletricidade. Além disso, em 1884, foi decretado o fim da escravatura e aos poucos a cidade adotou a forma de trabalho assalariado.

Outro aspecto fundamental deste término do século XIX foi o interesse na construção de ferrovias. A historiadora Luiza Helena Kliemann trabalha, resumidamente, com o processo de transformações das idéias em relação à construção das estradas de ferro no país, onde afirma que:


A influência européia, principalmente inglesa, era um fato na história do Brasil desde a vinda da Corte de Portugal em 1808. A substituição desta influência pela norte-americana deu-se paulatinamente, até chegar o momento ideal, proporcionado pela ruptura no sistema monárquico brasileiro. Ingleses e norte-americanos disputaram então o mercado brasileiro, fomentando a criação de indústrias, instalando e financiando a construção de estradas de rodagem e de ferrovias, criando companhias de navegação. Foi somente neste momento que começaram a amadurecer as idéias de industrialização (...).


Entre o final do século XIX e início do século XX houve um incentivo maior por parte do governo em promover a construção de estradas de ferro pelo país. Empresas estrangeiras de diferentes países investiram em obras que ligavam as zonas produtivas do interior aos portos (Porto Alegre e Rio Grande).

Luiza Kliemann cita a importância do capital estrangeiro na construção das ferrovias, onde diz que “o papel do capital estrangeiro é de suma importância e (...) algumas regiões da América Latina transformaram-se em ‘ilhas econômicas estrangeiras em zonas periféricas’”5.

A estradas ferroviárias do Rio Grande do Sul eram formadas, inicialmente, por três linhas principais que foram construídas em diferentes épocas. Tais linhas ligavam Porto Alegre a Uruguaiana, Rio Grande a Bagé e Santa Maria a Marcelino Ramos. No livro Centro de preservação da história da ferrovia no Rio Grande do Sul consta os motivos pelos quais a cidade de Rio Grande e Porto Alegre foram os primeiros locais a receberem as atenções para tais empreendimentos:


Porto Alegre, Capital da Província e a cidade do Rio Grande foram os pontos principais de convergência das ferrovias aqui implantadas, por razões eminentemente econômicas: Porto Alegre pela densidade populacional, necessitada de abastecimento pelas colônias e Rio Grande, por ser o único porto marítimo profundo, recebedor e exportador de mercadorias. Neutralizar a influência do Porto de Montevidéo e as razões de ordem militar também vieram decidir a diretriz das novas estradas de ferro. 6


Enquanto o Governo da Província expedia os primeiros atos em relação à construção das estradas de ferro que ligariam Novo Hamburgo a Porto Alegre, o governo imperial já havia iniciado as obras, aprovadas pelo decreto nº. 3924 de 1867, em Rio Grande (linha Rio Grande – Bagé).

No início, a maioria dos produtos eram transportados do interior para a capital pelo Lago Guaíba (este possui ligação com a Laguna dos Patos e outros rios que correm o estado gaúcho, exemplos disto são os Rios Jacuí e Caí). Em 10 de janeiro de 1867 a Lei Providencial nº. 599 esboçou o plano ferroviário que autorizou a construção de uma estrada de ferro entre Porto Alegre e proximidades de São Leopoldo. O empreiteiro britânico John Mac Ginity foi o concessionário da obra. Num trecho da obra Memória cidadã: Vila Belga destaca-se a utilidade e importância das linhas férreas para o estado:


Com efeito, os caminhos fluviais e as estradas (ou picadas), quando do advento da malha ferroviária, já interligavam os mandatários do Império, no sentido de facilitar o transporte de tropas, gêneros alimentícios e mercadorias de toda a ordem. Além, é claro, do indispensável trânsito de passageiros.7


O desenvolvimento das colônias de Novo Hamburgo e São Leopoldo foi o principal motivo para a construção de uma linha que ligava a capital a estes locais, através de um transporte rápido e econômico. Os trabalhos na obra começaram no ano de 1971.

A primeira seção que ligava Porto Alegre a São Leopoldo foi inaugurada em 14 de abril de 1874 “ficando os restantes para a entrada em tráfego a 1º de janeiro de 1876 [São Leopoldo - Novo Hamburgo], data que começou a operar trens de passageiro”8. Ainda no livro Centro de preservação da história da ferrovia no Rio Grande do Sul consta uma descrição importante sobre como era a navegação no Rio dos Sinos:


O Rio dos Sinos não era de fácil navegação, com trechos demasiadamente estreitos, em curso sinuoso e em cujo leito caiam galhos de árvore que, acompanhando a corrente, se deslocavam a uma velocidade de até 4 quilômetros por hora. Além disso, os passageiros dos barcos temiam o ataque de animais de grande porte, especialmente tigres e jacarés, que tinham junto ao rio seu ‘habitat’ natural. 9


O que se percebe nesta descrição era a necessidade, que se tinha na época, de construir uma linha que conectasse Porto Alegre à região de Hamburger Berg em São Leopoldo. Uma estrada de ferro facilitaria além do transporte de pessoas o de cargas.

Os investimentos para a construção da ferrovia que ligou Novo Hamburgo a Porto Alegre foram de capital inglês. A empresa responsável pela construção era denominada Porto Alegre and New Hamburg Brazilian Railway Company Limited”. Alice Cardoso e Frinéia Zamin apontam aspectos gerais sobre a nova estação:


Em geral em abril de 1874 foi inaugurada a seção da estrada compreendida entre a capital e São Leopoldo, com uma extensão de 33.756 metros que compreendiam as seguintes estações (ou paradas): Porto Alegre, Navegantes, Gravataí (depois Augusto Pestana), Canoas, Sapucaia e São Leopoldo. 10


Ao ser inaugurada a linha entre Porto Alegre e São Leopoldo, foram promovidas diversas festividades. Enquanto isso, a continuação da obra até Hamburg Berg cessou. Está região da colônia alemã era uma das mais habitadas na época. Um detalhe interessante teria originado o atual nome do lugar, isso porque os ingleses, responsáveis pela obra naquele local, escreveram uma tabuleta escrito New Hamburg e, naturalmente, surgiu mais tarde à denominação da localidade11.

Por conta do crescimento econômico e produtivo da colônia de São Leopoldo, viu-se a necessidade e importância de construir uma estrada de ferro que a ligasse a capital. As dificuldades enfrentadas no transporte de cargas pelo Rio dos Sinos não eram mais enfrentadas e surgiu uma rota comercial ágil e rápida. Desta forma, os produtos chegavam ainda “frescos” na capital e eram encaminhados ao Mercado Público Central, onde os donos de mercearias compravam os produtos alimentícios para revender nos bairros mais longínquos.

Através das ferrovias a população sul-rio-grandense apreciou uma nova forma de transporte veloz e econômico. Enquanto o Estado, tomou conhecimento das facilidades deste tipo de condução, tão comum nas potências internacionais da época. O Rio Grande do Sul iniciou no final do século XIX a sua era ferroviária que durou, aproximadamente, 40 anos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDOSO, Alice. ZAMIN, Frinéia. Patrimônio Ferroviário no Rio Grande do Sul: Inventário das estações 1874-1959. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Secretaria da Cultura DO Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pallotti, 2002.

FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 1988.

KLIEMANN, Luiza Helena Schmitz. A ferrovia gaúcha e as diretrizes de "ordem e progresso”: 1905-1920. Porto Alegre, 1977.

MALLMANN, Ana Maria Monteggia. Vila Nova. 2ª ed. Porto Alegre: EU/Porto Alegre, 1996.

Museu de Porto Alegre Joaquim José Felizardo. Porto Alegre uma História em 3 Tempos. Catálogo: Exposição de Longa Duração. Porto Alegre: Prefeitura de Porto Alegre / Secretaria Municipal da Cultura, 1998. Zita Rosane Possamai (Coordenação Geral da Exposição). - Este catálogo encontra-se no acervo do Centro de Pesquisa Histórica (CPH) de Porto Alegre, na divisão arquivística de Porto Alegre.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. História do Rio Grande do Sul. 8. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1997.

POSSAMAI, Zita Rosane. ORTIZ, Vitor (orgs). Cidade e memória na globalização. Porto Alegre:Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2002.

Rio Grande do Sul. Secretaria de Estado da Cultura. Centro de História Oral. Memória cidadã: Vila Belga. Porto Alegre: Sedac/CHO, 2002.

s/org. Centro de preservação da história da ferrovia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Metrópole, s/d.

- Este exemplar encontra-se no acervo do Centro de Pesquisa Histórica (CPH) de Porto Alegre, na divisão arquivística de Porto Alegre.

NOTAS:

1 Ver mais em: FRANCO, Sérgio da Costa. Porto Alegre: guia histórico. Porto Alegre: Ed. da Universidade / UFRGS, 1988.

2 Ibidem, p.270.

3 POSSAMAI, Zita Rosane. ORTIZ, Vitor (orgs). Cidade e memória na globalização. Porto Alegre:Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2002. p.121-122.

4 A Revolução Farroupilha durou de 1835-1845.

5 KLIEMANN, Luiza Helena Schmitz. A ferrovia gaúcha e as diretrizes de "ordem e progresso”: 1905-1920. Porto Alegre, 1977. p.16.

6 s/org.. Centro de preservação da história da ferrovia no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Metrópole. s/d. p.34. Este exemplar encontra-se no acervo do Centro de Pesquisa Histórica (CPH) de Porto Alegre, na divisão arquivística de Porto Alegre.

7 Rio Grande do Sul. Secretaria de estado da Cultura. Centro de História Oral. Memória cidadã: Vila Belga. Porto Alegre: Sedac/CHO, 2002. p.25.

8 Ibidem, p. 17.

9 Ibidem, p.24.

10 CARDOSO, Alice. ZAMIN, Frinéia. Patrimônio Ferroviário no Rio Grande do Sul: Inventário das estações 1874-1959. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Secretaria da Cultura do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Pallotti, 2002. p.55.

11 Engº. Ariosto Borges Fortes. Histórico da viação férrea do Rio Grande do Sul [datilografado]. R.F.F.S.A. Datado de março de 1964. p.4. Este exemplar encontra-se no acervo do Centro de Pesquisa Histórica (CPH) de Porto Alegre, na divisão arquivística de Rio Grande do Sul.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Livros Riscados


Quem já não viu livros em bibliotecas rasurados, desenhados, rasgados ou recortados?

Registro aqui meu protesto. Devemos cuidar dos livros, principalmente os públicos, já que eles eternizam idéias e histórias.
Valorizemos suas memórias!

Aproveito para indicar como leitura o livro "O caminho de Eldorado. A descoberta da Guiana por Walter Ralegh em 1595."

Este livro foi produzido a partir do diário de viagem de Walter Ralegh e descreve o caminho percorrido na descoberta de uma nova terra e de um povo e sua cultura.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

cOmEnTáRiOs

A OUTRA FACE DA MOEDA

Resumo: Este artigo faz uma análise da peça teatral A farsa da

UMA ANÁLISE DA PEÇA TEATRAL A FARSA DA ESPOSA PERFEITA (1959)


Resumo:
Este artigo faz uma análise da obra teatral A farsa da esposa perfeita, avaliando a representação da mulher gaúcha (prenda) descrita no texto e a imagem construída pelo tradicionalismo sul-rio-grandense. Pretende ainda inserir no estudo aspectos da cultura local de Bagé. A obra foi escrita pela gaúcha Edy Lima e encenada em 1959 no Teatro de Arena em São Paulo.

Palavras chaves: História cultural, Rio Grande do Sul, Edy Lima, prenda, mulher gaúcha, tradicionalismo, teatro.


O texto teatral, embora de criação individual, deve conter elementos do imaginário coletivo para ser aceito pela platéia. Jacques Le Goff2.

A afirmação de Jacques Le Goff define a intenção desta pesquisa, isto porque o tema com que se pretende trabalhar utiliza a peça teatral de Edy Lima, intitulada A Farsa da esposa perfeita, para se fazer uma análise da representação popular da mulher gaúcha (prenda).

Edy Maria Dutra da Costa Lima nasceu em Bagé, em 1923, onde viveu até os seus 18 anos. Depois mudou-se para São Paulo por influência do amigo Monteiro Lobato. A autora recebia cartas e manuscritos, que guarda até hoje, de seu outro amigo Mário Quintana.

Deparamos-nos com uma autora que fez parte de um sistema educacional que perpetuava a noção de uma mulher voltada para o mundo privado e doméstico, além de situar-se numa sociedade onde reinava o patriarcado (proveniente da visão positivista). Contudo, esta escritora teve contato, em sua mocidade, com escritores ilustres da literatura, além da oportunidade de trabalhar na Revista do Globo, em Porto Alegre, antes de mudar-se para o Rio de Janeiro.

Edy Lima escreveu livros como A Quadratura do Círculo e A Vaca Voadora. O primeiro livro conta sobre os primeiros 18 anos de vida da autora, mesclando acontecimentos mundiais como a Guerra na Espanha e II a Guerra Mundial, enquanto o outro, além de uma história bem humorada, traz a questão da diversidade cultural.

As peças teatrais, em sua maioria, são representações sociais3, porém não se deve cair na armadilha de acreditar que um texto literário é puramente um reflexo ou um depoimento inerte sobre a prática social habitual, e deixar de tomar conhecimento da visão de quem o escreveu. Por este motivo um dos critérios de escolha desta peça foi o fato de ter sido escrita por uma gaúcha, que mais tarde foi reforçado pela questão da autora ter nascido na cidade que é pano de fundo da obra.

A peça A farsa da esposa perfeita se passa em Bagé, no Rio Grande do Sul, e crítica a mentalidade construída da prenda com todos os adjetivos de uma “esposa perfeita”. Segundo Claudia Dutra a prenda representa a figura construída de uma identidade da mulher gaúcha.4

Com personagens populares a autora monta uma teia de intrigas entre três homens e duas mulheres, que em busca de seus interesses acabam enganando e disfarçando a realidade. Em meio às traições surge a critica do que seria a esposa perfeita, no qual a autora levanta uma polêmica quando escolhe como personagens homens e mulheres gaúchas, já que tais figuras foram idealizadas pelo tradicionalismo sul-rio-grandense.

Diante desta questão abordada na peça A farsa da esposa perfeita, surgiu o seguinte questionamento; ao tratar desta questão da traição, por parte da prenda, a autora inseriu em sua obra aspectos da realidade?

Para tanto, faz-se necessário conhecer, além da história da autora, o contexto de criação da obra. O autor é o criador das personagens e do espaço cênico, produz o texto com criatividade, mas é influenciado por sua bagagem cultural e percepção de mundo. Gisele Becker aponta as palavras de Mikhail Bakhtin que complementam esta afirmação:

O autor não pode ser dissociado de suas imagens e suas personagens, uma vez que entra na composição dessas imagens das quais ele é parte integrante, inalienável. (...). Por fim, todas as personagens e seus discursos não são mais que objetos que demonstram a atitude do autor (e do discurso do autor).5


Os anos de 1958-1959 (anos em que a peça de Edy Lima, que esta sendo utilizada como objeto de pesquisa, foi, respectivamente, escrita e encenada) foram os últimos da presidência de Juscelino Kubitschek, bem como os anos finais da construção da nova capital brasileira, Brasília.

Juscelino Kubitschek (JK) foi presidente de 1955 a 1961, e depois de um longo período de políticas autoritárias, JK aboliu medidas de exceção do governo anterior, sem se valer da censura. O Brasil neste período respirava ares com as idéias de modernidade.

Enquanto isto, no Rio Grande do Sul (estado onde se desenrola a peça “A farsa da esposa perfeita”), o PSD representado pelo governo de Ildo Meneghetti (1955-1959) enxergava a questão da industrialização como um objetivo a ser alcançado, embora defendesse que a indústria a ser amparada e incentivada deveria ser aquela que beneficiasse os produtos provenientes da agropecuária.

Porém, em meio a tantas idéias modernas, onde se encontrava a tradição? Esta era uma das preocupações destes tempos. Os conservadores acreditavam que tantas novidades iriam acabar com o folclore.

Para não deixar que a modernidade sufocasse as diversas culturas de nosso país, foram geradas associações para manter a tradição e o folclore6. Ressalta-se que o folclore designa o saber do povo e se caracteriza por ser local, espontâneo, anônimo e coletivo. Ao contrário do movimento tradicionalista que teve os seus criadores e é normativo, ou seja, não é espontâneo e é acolhido por um determinado grupo.

Edy Lima faz a sua construção intelectual inserindo em sua obra elementos folclóricos e do imaginário sul-rio-grandense. Na narrativa da peça “A farsa da esposa perfeita”, esta noção pode ser exemplificada com peculiaridades como o ato de beber chimarrão7, a crença em benzedeiras, a cachaça de Santo Antônio da Patrulha8, o machismo masculino dentre outros. Sendo assim, a peça de Edy Lima se encaixa nas atividades que visavam à proteção folclórica da época.

Para responder ao questionamento da pesquisa, recorri às bibliografias relacionadas com assuntos como teatro, cultura sul-rio-grandense, movimento tradicionalista, a mulher ao longo da história, dentre outros. E antes de qualquer coisa foi necessário compreender a origem do termo da prenda e gaúcho.

Com o surgimento da segunda fase do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG), em meados de 1947, no qual nasceu após a criação do Departamento de Tradições Gaúchas no Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre, e a partir disto em 1948 a criação do primeiro Centro de Tradições Gaúchas (CTG) denominado 35º CTG, definiu-se o local que teria como objetivo cultivar a memória do que foi chamada tradição9 gaúcha.

Vale ressaltar a definição de Luiz Carlos Lessa, a respeito do significado de tradicionalismo onde afirma:


Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica (mesmo que não se aperceba de tal finalidade) com o fim de reforçar o núcleo de sua cultura: graças ao que a sociedade adquire maior tranqüilidade na vida em comum. 10


Esta criação promoveu a construção de alguns signos e símbolos que foram marcados na memória como sendo parte da cultura sul-rio-grandense, no qual a figura da prenda passou por este processo de construção. O antropólogo Clifford Geertz define cultura da seguinte maneira:


(...) é um padrão, historicamente transmitido, de significados incorporados em símbolos, um sistema de concepções herdados, expressos em formas simbólicas, por meio das quais os homens se comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atitudes acerca da vida.11


Através da transmissão da cultura surge uma memória coletiva. Esta é um forte fator de organização e solidificação do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Ressalto as palavras de Pierre Nora que define memória coletiva como sendo o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o que os grupos fazem do passado. 12

Foi necessário pensar numa denominação para as mulheres que estavam ingressando no CTG, porém esta tarefa foi complicada, já que o passado não dispunha dos subsídios necessários à criação da figura ideal da mulher gaúcha, como afirma Claudia Dutra. A denominação das mulheres dos gaúchos no passado era o termo “china”, este era aplicado tanto para mulheres brancas, negras quanto para índias.

As chinas ou vivadeiras eram mulheres que acompanhavam os gaúchos nas guerras (mulheres guerreiras). Hilda A. Hübner Flores cita Anita Garibaldi como a “guerreira’ mais famosa, que saiu do anonimato porque tornou-se uma heroína, ainda em relação às chinas afirma:



Eram as mulheres que em períodos de guerra acompanhavam as tropas em seus deslocamentos e permaneciam nos campos de combate cuidando do soldado enquanto a mulher legítima aos olhos de deus e da sociedade patriarcal, esposa ou mãe, permanecia em casa (...) essas mulheres atendiam a toda a sorte de necessidades dos milicianos: cozinhavam, lavavam, cuidavam da farda, remendavam, pregavam o galão que a luta arrancou, improvisavam recursos em suas barracas ou carretas, onde à noite abrigavam o corpo esfomeado do soldado. 13

A palavra china conservou o sentido de prostituta, considerado inadequado para designar a mulher gaúcha. O termo escolhido foi prenda14 que designaria uma mulher valorosa.

A figura da prenda é o símbolo de uma mulher exemplar, quando adolescente vemos, desde os gestos delicados que compõem a dança até o traje e seus elementos, a representação de uma prenda romântica, ingênua e sonhadora, e quando adulta a mulher passa a ter outras responsabilidades, no qual deve ser o modelo da mãe atenciosa e esposa dedicada, sempre submissa e dependente. Acrescento ainda mais ao significado da prenda nesta pesquisa citando as palavras de Dutra:


A imagem da prenda é envolvida também pela criação de uma figura feminina exemplar, humilde, simples e dedicada ao mundo doméstico (rancho), de um modelo de mulher decente e recatada, sem sexualidade. (...) Esse imaginário, de um modo de ser feminino, maternal, recatado, fraternal, paciente e forjado no sacrifício, é difundido e traduzido pela figura da prenda (...). 15

Olalia (personagem central da peça A farsa da esposa perfeita) é uma mulher casada, que lava roupas para auxiliar nas despesas domésticas, e em certo momento quando percebe que seu esposo irá ter um grande prejuízo por conta de uma aposta, se deixa influenciar, pelo segundo personagem feminino da peça (Sra. Noca, esta personagem representa uma curandeira16), e acaba traindo o seu marido com outros dois personagens (Seu Jesuíno e Zeca, este personagem era ex-namorado de Olalia) em troca de seus objetivos.

Nas falas a seguir vemos a personagem principal praticando uma atividade comum das mulheres da época (passadeira de roupas17), além de demonstrar a sua dedicação ao marido, numa visão romântica:

Olalia: (Começando a passar a roupa). Corre na casa de D. Eustáquia mia freguesa e pede o dinheiro do lavado adiantado, alega que é um causo de percisão.18

(...)

Olalia: Que ta fazendo? Preciso planchar [passar] essa rôpa inda hoje, pra entregar amanhã de manhã19.

(...)

Olalia: O causo é que quero muito ao Sirvano20.

Nestas falas a autora implanta na peça as atividades das mulheres da época, que desta maneira colaboravam na renda familiar ou, em alguns casos, sustentavam seus filhos.

Outros aspectos introduzidos na obra é a questão da rinha21 de galo e a inserção de uma curandeira, que é uma figura existente na memória coletiva. Vejamos a seguir algumas falas da obra:


Sirvano: (Ansioso). Será que ele se apruma [pergunta se o galo irá melhorar]?

Sia Noca - Quando estas mãos benzem tudo clareia. 22

(...)

Sirvano: Mais o caso é que a rinha ta amarrada pro domingo.

(...)

Sirvano: A rinha é de parada morta. O que arrepiar o pêlo [desistir ou não comparecer] tem que pagar como se fosse o perdedor23.

Embora o foco da peça seja o caso extraconjugal da esposa e seus dois amantes, o que seria considerado um crime contra os bons costumes numa comunidade tradicional e religiosa, vemos também a presença da cultura cristã da sociedade de Bagé naquela época, demonstrada através do apadrinhamento24.

A mulher casada deveria agradar somente o marido, e assuntos relacionados a sexo eram tabus naquela época, por conta dos valores cristãos.

Claudia Dutra afirma que a idéia cristã de matrimônio é a de casamento monogâmico, no qual a mulher deveria seguir o exemplo de Maria, que é a representação simbólica do modelo feminino perfeito25.

No final da obra Edy Lima surpreende o leitor ao encerrar a farsa revelando outra mentira. Neste momento a autora muda o alvo sem trocar o foco da crítica, isto porque durante a peça se constrói a idéia de que o esposo traído (Sirvano) é um homem ingênuo, apaixonado, dedicado e honrado, mas ao revelar que este possuía um affair de muito tempo com a curandeira (Sra. Noca) a autora levanta sua segunda crítica social, e nos remete a imagem de uma sociedade mantida por aparências.


Sia Noca: E as mias relação não vale nada?

Sirvano: Como que disse?

Sia Noca: Muda pro Passo do prince e tu vai ver se dei jeito em ti... quando apareceste gaudério, pedindo pousada no meu rancho...

Sirvano: Nóis dois ôtra vez?

Sra Noca: Tu nunca deixou de gostar de mim...26

Sirvano: Tenho lutado contra essa tentação pra não dar um desgosto pra Olalia...

Sra Noca: Ela tem mais o que fazer do que pensar nisso. De nóis dois, nem Deus no céu desconfia.27


O tradicionalismo construiu a imagem do homem sul-rio-grandense (gaúcho) como sendo uma figura guerreira, honesta e seguidor dos bons princípios, mas ao ser representado como um homem de duas caras que também traiu a sua esposa, a autora critica a imagem transmitida culturalmente pelo movimento tradicionalista. Fica claro que o que ocorre é uma recriminação desta cultura sul-rio-grandense, que por ter sido construída deixou cair no esquecimento aspectos que fazem parte da realidade.

É diante da descrição do cotidiano que nos deparamos com as características de uma época. Além disso, o teatro estabelece o contato do autor com o seu público, e esta farsa foi bem aceita pelo público brasileiro, com exceção dos tradicionalistas como afirma Moacir Flores “a farsa não agradou aos tradicionalistas, que viram apenas uma caricatura dos costumes gauchescos, ofensiva aos sul-rio-grandenses”. 28

Ao longo da história a figura da mulher possuiu diversos significados, que vão desde a designação da origem do mal até a sua atualização, no século XIX, passando a ser a responsável pela educação das crianças, Michelle Perrot faz a seguinte afirmação:


Segundo um viajante inglês dos anos 1830, “embora juridicamente as mulheres ocupem uma posição em muito inferior aos homens, elas constituem na pratica o sexo superior. Elas são o poder que se oculta por detrás do trono e, tanto na família como nas relações de negócios, gozam incontestavelmente de uma consideração maior do que as inglesas”. (...) As heroínas domésticas, pelos seus sofrimentos, sacrifícios e virtudes restabelecem a harmonia do lar e a paz da família. Elas têm o poder – e o dever – de agir bem29.


Dutra remete às palavras de Luiz Fernando Veríssimo que descrevem o padrão feminino para o tradicionalismo sul-rio-grandense:


Nossa história toda foi guerreira, campeira e patriarcal. Em sociedades assim o homem faz da mulher menos do que um acessor, um acessório. A mulher é subalterna e aí que não goste. Nada mais educativo do que nossas danças tradicionais, em que os homens sapateiam, batem as esporas, cruzam os facões e brilham enquanto as prendas rodam a saia30.

Na medida em que o palco como um todo pode reproduzir a memória e/ou a visão de quem o escreveu, acredita-se que a História pode utilizar-se do teatro para preencher algumas lacunas do cotidiano de uma época. Portanto, conclui-se que a critica feita por Edy Lima trata de aspectos coerentes da realidade sul-rio-grandense. O tradicionalismo partiu do padrão feminino positivista e do molde da mulher cristã na construção do significado da prenda (mulher gaúcha), já que nenhum modelo adequado foi encontrado no passado.

Fato é que o gaúcho como figura guerreira e livre não poderia consolidar a imagem de uma mulher independente como padrão feminino. Portanto, o modelo ideal para as sul-rio-grandenses seria a dona-de-casa, aquela que cuida dos filhos e dedica-se ao lar, a esperar de forma submissa o seu marido. A mulher autônoma, ou aquela que seguisse o homem guerreiro, e determinasse o seu destino fora da vida doméstica não seria a mulher exemplar, mas sim a chinóca (ou china) do passado. Porém, ressalto que a prenda foi uma imagem totalmente construída, e ganhou os atributos daqueles que viviam numa sociedade patriarcal do século XX.

Edy Lima constrói a sua crítica em cima da traição por parte da mulher, e questiona o que realmente é uma esposa perfeita, mas não deixa de acrescentar as suas observações em relação ao homem gaúcho. O marido honesto e provedor do lar, também foi apontado, no desfecho da peça, como dissimulado e infiel, um homem ambicioso e que carregava os seus vícios, neste caso a briga de galos.

Além disto, se a intenção era criticar as traições entre os casais não era necessário escolher uma cidade do interior, onde o tradicionalismo patriarcal é mais intenso, e do Rio Grande do Sul, que possuía um forte movimento tradicionalista na época como até hoje, como pano de fundo para uma peça teatral.

Em sua peça Edy Lima menciona diversas características da cultura sul-rio-grandense (o curandeirismo, as lavadeiras, o chimarrão, a cachaça de Santo Antonio da Patrulha, etc.), e tal sociedade fez parte da vida da autora que, por tomar caminhos culturais diferentes daqueles de seu tempo e espaço sulista, rompeu com as suas tendências, e apresentou traços de uma mentalidade avançada para os padrões de seu tempo. Não se pode esquecer que, além de teatróloga, Edy Lima iniciou profissionalmente como jornalista, sendo assim, desde o início a autora lidou com a realidade.

Uma peça que retrata os hábitos cotidianos com descrições detalhadas e diversas vezes negativas, não poderia mesmo agradar àqueles que a construíram sem estes pequeninos detalhes. Embora tenha sido, em geral, bem aceita pelo público brasileiro. A farsa faz parte das peças teatrais e também de nosso cotidiano, além disto, a formação de uma cultura e a criação de uma memória coletiva que elevam somente os pontos positivos não é privilégio apenas dos tradicionalistas sul-rio-grandenses, e a história cultural há muito tempo já está nos mostrando isto.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro : Zahar, c2004

CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.

DUTRA, Claudia Pereira. A Prenda no Imaginário Tradicionalista. Porto Alegre, Dissertação de Mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002.

FLORES, Hilda A. Hübner (Org.). Regionalismo Sul-Rio-Grandense. Porto Alegre: Circuito de Pesquisas Laboratoriais/Nova Dimensão, 1996.

___________. Sociedade: preconceitos e conquistas. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1989.

FLORES, Moacyr. O Negro na Dramaturgia Brasileira. 1838-1888. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.

GOFF, Jacques Le. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1994.

___________ História: Novos Objetos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.

JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.

PERROT, Micehelle. Os excluídos na história: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1998.


SITES:

MOURA, Maria Izabel T. de. História do RS: A Mulher. Disponível em: www.mtg.org.br/mulher.html.

www.nonio.uminho.pt

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NOTAS:

2 GOFF, Jacques Le, citado por FLORES, Moacir. O Negro na Dramaturgia Brasileira. 1838-1888. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. p. 9.

3 CHARTIER, Roger. A História Cultural. Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. Chartier define representações como um instrumento do conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma “imagem” capaz de reconstituí-lo em memória e de figurá-lo tal como ele é. Estes objetos podem ser signos e/ou símbolos que Moacyr Flores define em sua obra O Negro na Dramaturgia Brasileira, respectivamente, como sendo representaçõesde categorias e valores através de gestos ou atitudes de acordo com a situação, (...) e representações de uma idéia através de uma analogia”. p.8. E para acrescentar ao significado de símbolo utilizo as palavras de Carl G. Jung que o explica como sendo “um termo, um nome ou mesmo uma imagem que nos pode ser familiar na vida diária, embora possua conotações especiais além do seu significado evidente e convencional”. JUNG, Carl G. O Homem e seus Símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. p. 20.

4 DUTRA, Claudia Pereira. A prenda no imaginário tradicionalista. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002.

5 BECKER, Gisele. Uma História Polifônica: mulheres e laços de família em Porto Alegre (1858-1908). Porto Alegre: Dissertação de Mestrado pela PUCRS, 2001. p. 62. A prenda no imaginário tradicionalista.

6 Rossini T. de Lima afirma que “o folclore é uma ciência do homem, que analisa o homem cultural, nas suas expressões de cultura espontânea, do sentir, do pensar, agir e reagir, e também no contexto da sociedade em que vive, portanto, como homem social”. LIMA, Rossini Tavares de. Abecê do folclore. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.13.

7 Chimarrão é uma bebida amarga feita com mate cevado.

8 Em uma das falas o personagem Sirvano (esposo) diz o seguinte: “Vamos empinar uma azulzinha especial de Santo Antônio da Patrulha, que guardei prá ocasião”. Personagem Zeca responde afirmando: “Venha a canha, que a data carece”. LIMA, Edy Maria Dutra da Costa. A farsa da esposa perfeita. Porto Alegre: Garatuja/Instituto Estadual do Livro, 1976. p.29.

9 Jacques Le Goff na página 72 de sua obra História: Novos Objetos define tradição como sendo “as maneiras pelas quais se reproduzem mentalmente as sociedades, as defasagens, produto do retardamento dos espíritos em se adaptarem as mudanças e da inegável rapidez com que evoluem os diferentes setores da história”.

10 LESSA, Luiz Carlos Barbosa citado por DUTRA, Claudia Pereira. A prenda no imaginário tradicionalista. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002. p. 12.

11 GEERTZ, Clifford apud BURKE, Peter. O que é História cultural. Rio de Janeiro: Zahar, c2004. p. 52.

12 NORA, Pierre apud GOFF, Jacques Le. História e Memória. Campinas; SP: Editora da UNICAMP, 1994. p. 4372

13 FLORES, Hilda Agnes Hübner. Sociedade: preconceitos e conquistas. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1989. p. 31.

14 No dicionário prenda é uma palavra que designa objeto de valor, que pode ser dado de presente ou brinde para alguém.

15 DUTRA, Claudia Pereira. A prenda no imaginário tradicionalista. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002. p. 116.

16 Curandeira é o mesmo que benzedor.

17 Passadeiras eram as mulheres que passavam roupas para fins financeiros.

18 LIMA, Edy. A farsa da esposa perfeita. Porto Alegre: Editora Garatuja, 1976. p. 14.

19 Ibidem p. 16.

20 Ibidem. p. 15.

21 Rinha é uma luta entre galos, aonde alguns dos freqüentadores, que vão para assistir a briga, apostam no galo que acreditam que sairá vencedor.

22 LIMA, Edy. A farsa da esposa perfeita. Porto Alegre: Editora Garatuja, 1976. p. 11.

23 Ibidem. p. 12.

24 A relação de apadrinhamento nasce quando o padrinho serve como testemunha de batismo ou casamento, neste caso vê a firmação do apadrinhamento no batismo religioso cristão. O padrinho tem a função de proteger o seu afilhado, basicamente, em momentos de necessidade.

25 DUTRA, Claudia Pereira. A prenda no imaginário tradicionalista. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002. p. 62.

26 LIMA, Edy. Ibidem p.63.

27 LIMA, Edy. Ibidem p.64.

28 FLORES, Hilda A. Hübner (Org.). Regionalismo Sul-Rio-Grandense. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1996. p. 108.

29 PERROT, Micehelle. Os excluídos na história: operários, mulheres e prisioneiros. Tradução Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1998. p. 168.

30 DUTRA, Claudia Pereira. Ibidem p.66.